– PEDRO LUSO DE CARVALHO
O
acadêmico de Direito que aguarda com ansiedade o término do curso para começar
a exercer a advocacia sente que tal militância é a sua verdadeira vocação (não
se sente atraído pelo Ministério Público, pela Magistratura, pelo Magistério, etc.),
mal espera a colação de grau e a sua aprovação no exame da Ordem dos Advogados, que lhe dará a necessária habilitação, para
abrir seu escritório e começar a trabalhar. O jovem advogado logo estará
recebendo os seus primeiros clientes, e por certo não esconderá o seu
entusiasmo e a sua satisfação com essa experiência.
E, tendo
passado por essas fazes, das quais falei acima, terá consciência das
dificuldades que o espera, tais como: a formação de uma carteira de clientes; a
dificuldade de mantê-los fiéis ao longo do tempo [causas futuras poderão
ser-lhe entregues pelo mesmo cliente]; o estudo minucioso dos documentos que
possam vir a dar suporte à lide, antes de contratar os seus honorários com o
futuro constituinte (saberá declinar dessa contratação, se entender que o
direito a ser pleiteado não poderá obter o sucesso esperado).
Outras
tantas barreiras aparecerão logo no início dessa caminhada, que poderá ser
longa, na defesa dos interesses dos seus clientes; disse ‘poderá’, porque
muitas vezes o peso das dificuldades pelas quais passa o advogado estreante, é
superior a força da sua vocação para o exercício da advocacia – e, nesse caso,
não raras vezes, infelizmente, essa caminhada não vai muito longe. Mas, quando
nenhum obstáculo for grande o suficiente para tolher essa vocação, pode-se
antever o sucesso que o advogado terá na sua militância.
Posto
isso, a título de motivação ao jovem advogado cabe-me fazer a transcrição de
uma história contada pelo célebre jurista italiano Piero Calamandrei, no seu
livro Elogio dei giudici scritto da un
avvocato (Eles, os juízes, visto por
nós, os advogados, ed. Livraria Clássica Editora, Lisboa, Portugal), sobre
um advogado que se encontrava doente e relutava em deixar de lado o seu
trabalho. Segue a referida narrativa de Calamandrei:
Para
continuar idiotamente a descrever os advogados como o vampiro de seus clientes,
é preciso não ter assistido aos últimos momentos de um advogado florentino,
cujo fim inesquecível pareceu aos colegas, que o viram morrer em pleno vigor da
idade, exemplar e quase simbólico.
Num dos primeiros
dias da doença não quis dizer a ninguém que se sentia com febre e continuou
obstinadamente a sua costumada vida de trabalhador infatigável, todo o dia
ocupado com os clientes e serviços de audiência, e perdendo as noites até de
madrugada a escrever no silêncio da sua biblioteca, alegações de defesa e
páginas sobre páginas. Mas depois a febre, que sob uma robustez aparente
encontrava a devastação feita por esse esforço de anos prostrou-o de um golpe.
Contrariado e quase envergonhado, teve de recolher-se ao leito, dizendo porém
debilmente que se tratava de uma indisposição passageira e que no dia seguinte,
sem falta, iria novamente ao escritório.
Mas não
se levantou da cama. Lutou por alguns dias, teimando em que lhe trouxessem do
escritório os processos mais urgentes, com a ilusão de os poder estudar,
amparado em almofadas. Quando se apercebeu que os olhos e a cabeça já não lhe
obedeciam, começou como uma criança a lamentar junto da família a continuação
da doença, que o impedia de trabalhar, e atormentou o médico, explicando-lhe
com insistência que os advogados não se podiam dar ao luxo de estar doentes:
“Isto não é como a medicina. Estão em jogo os interesses dos clientes e há
prazos que terminam!”
Ao modo
como o mal se agravava, a ideia dos processos tornou-se uma obsessão; em certos
momentos, possuído de uma espécie de delírio racional, ditava pedaços
desconexos de argumentação jurídica e dirigia-se em discursos aos juízes, como
se os tivesse ali, sentados aos pés da cama, a ouvi-lo. Depois, toda a sua
aflição concentrou-se numa idéia única: na discussão de um recurso de revista,
marcada já para uma audiência próxima, cujo adiamento lhe parecia não poder
pedir “por ser uma vergonha. Uma vergonha...”
Nos
últimos dias não teve outro desejo que não fosse obter do médico, como se acaso
dependesse dele, a cura antes da discussão do recurso; era preciso que nesse
dia pudesse partir para Roma, a fim de tomar parte na audiência. Na sua mente
perturbada aquela audiência assumia uma importância decisiva e quase fatal, não
só para a sorte da causa, mas também para o destino da sua vida: “Se não posso
ir discutir este recurso, sou um homem acabado: se não consigo um julgamento
favorável, nunca mais me curo...”
Então e
porque desaparecessem todas as esperanças de cura, os amigos para o tranquilizarem,
combinaram um engano piedoso. Obtiveram, sem que ele soubesse, que a discussão
fosse adiada para longa data, mas no dia em que devia ter tido lugar, para
evitar a notícia do adiamento, que podia ser tomada como mau presságio fez
expedir de Roma um telegrama anunciando que o recurso, sem necessidade de
discussão, tinha sido inteiramente provido.
O
telegrama chegou quando já estava na agonia, mas quando lhe leram, abriu um
instante os olhos e murmurou sorrindo: “Então me curo...” Foram estas as suas
últimas palavras e talvez o seu último pensamento. Em volta da cama estavam a
mulher, os filhos e um colega de escritório, mas o último sorriso foi para
aquela notícia, para esse anúncio da Justiça, que no seu pensamento de
moribundo se confundia com o sinal da cura.
Morreu
talvez sem dar por isso, sossegado por não ter faltado ao seu dever e por não
ter comprometido, com o inoportuno contratempo da doença, o que unicamente
contava em sua consciência: a vitória do cliente, para defesa de cujo direito
se lhe confiara. Não era um herói, nem um santo: era simplesmente... um
advogado.
* * *