– PEDRO LUSO DE CARVALHO
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. escreveu o livro Conceito
de Sistema no Direito, com o subtítulo de Uma investigação histórica a partir da obra jusfilosófica de Emil Lask,
publicado pela Editora Revista dos Tribunais, em 1976. O autor dedicou a obra a
Miguel Reale, que o recomendaria aos seus alunos, por certo, se estivesse vivo,
quer pela importância do tema, quer pelo que representa o escritor, autor de
vários livros e de artigos publicados em revistas especializadas, especialmente
no Brasil.
Tércio
Sampaio Ferraz Jr. tem uma qualificada formação jurídica: é Doutor em Direito
pela Universidade de São Paulo, e Doutor em Filosofia pela Universidade de
Johannes Gutenberg, de Mainz, Alemanha. Os seus conhecimentos vêm sendo
transmitidos ao longo dos anos, como emérito professor que é; leciona Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo, na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Escolhemos
para esta publicação, O Caráter Rapsódico
do Sistema de Kant, parte do § 3º do Capítulo II, da obra, intitulada A Reação Neokantiana: As Raízes Imediatas de um Impasse - em
outra oportunidade, voltaremos a esse parágrafo § 3º para a continuação do
texto. Tércio Sampaio Ferraz Júnior inicia dizendo:
Existe na doutrina de Rickert o pressuposto do primado do ético sobre o teorético, que estabelece uma clara correspondência entre valor e comportamento ético, mesmo para o conceito de verdade, enquanto valor teorético fundamental. Com isto, o conhecimento deixa de ser um comportamento indiferente, para tornar-se uma afirmação prática, uma espécie de atitude moral perante um valor.
Um juízo, diz
Rickert, pretende sempre alcançar a verdade. Esta não é determinada como
adequação entre imagem e objeto, mas como conjunto de juízos que reconhecem
algo valioso ou devido (Gesolltes). Os
juízos que contêm o conhecimento do ser ou da realidade, não são verdadeiros
porque dizem o real, mas, ao contrário, algo é real, enquanto é reconhecido
como tal pelos juízes. O valor reconhecido pelo juízo é independente dos conteúdos da consciência (Bewusstseinsinhalte). Não nos obriga a
afirmar isto ou aquilo, mas simplesmente a afirmar alguma coisa. Em relação ao
sujeito, fala Rickert de ‘necessidade de
juízo (Urteilsnotwendigkeit). Em
relação ao próprio valor refere-se ele à necessidade
do dever ser (notwendigkeit des
Sollens). O dever ser (Sollen) é, assim, a condição lógica da
possibilidade da realidade. Neste sentido, dá-se, então, uma prioridade do dever ser sobre o ser.
Esta tese refere-se
diretamente ao problema kantiano da relação entre o mundo da razão teorética e
o mundo da razão prática, ou ainda, entre o mundo do entendimento (Verstand) e o mundo da razão (Vernunft) e, em consequência, à questão
da sua sistematização. Para Kant, a lógica transcendental tem por função
determinar a origem, a extensão e o valor objetivos dos conhecimentos a priori.
A lógica, nestes termos, não é para ele apenas uma ciência da forma da razão,
mas a ciência da razão por sua matéria. Não se limita, assim, a uma
determinação subjetiva da razão, apontando meramente o modo pelo qual o
entendimento pensa, mas destaca, através dos princípios a priori, como deve o
espírito pensar. A lógica transcendental constitui-se, pois, para Kant, nas
condições obrigatórias do pensamento, condições determinantes da veracidade e
da própria existência de nosso pensamento.
Essa dissecação da
razão compreende a descoberta dos elementos do entendimento puro, uma
verdadeira decomposição desta faculdade. Esta decomposição cabe à analítica
transcendental. Ela versa sobre o entendimento puro, tido como uma unidade
subsistente por si mesma e independente de qualquer elemento empírico e de toda
sensibilidade. Tratando dos elementos do conhecimento puro do entendimento e
dos princípios sem os quais nenhum objeto pode ser pensado absolutamente, a
analítica vem a se constituir na própria lógica da verdade.
A analítica
transcendental quer demonstrar que o entendimento é limitado e não permite
atingir o mundo das coisas em si. A dedução transcendental parece, neste sentido,
ser suficiente para determinar nas categorias não um conhecimento completo e
acabado, mas simples modos que supõem uma matéria: as instituições. Mas, neste
caso, cabendo a outra parte da lógica transcendental – à dialética – a
demonstração do vazio representado pelos elementos transcendentais assinalados
pela analítica, atribui-se àquela função extremamente importante e que supera o
caráter de mera contraprova da analítica. À dialética cabe resolver o problema
da unidade sistemática da razão. Com efeito, diz-nos Kant, a razão humana é, por sua natureza, arquitetônica, isto é, ela
considera todos os conhecimentos como pertencentes a um sistema possível.
Se atentarmos
aos nossos conhecimentos do entendimento na sua
extensão total, veremos que aquilo sobre o que a razão dispõe de modo
absolutamente peculiar e que ela procura realizar (zustande bringen) é a
unidade do sistema". Esta exigência da razão de uma unidade sistemática
significa, em primeiro lugar e num sentido negativo, que os nossos
conhecimentos não devem representar um mero agregado, sem unidade e sem
sentido, fundado simplesmente, por exemplo, na semelhança dos diversos, pois
neste caso teríamos apenas uma unidade técnica e não arquitetônica. Em segundo
lugar e num sentido positivo, significa ela que todos os conhecimentos devem
constituir uma totalidade comum, articulada nos seus elementos. Esta
articulação deve proceder da afinidade e da conexão íntima dos próprios
fatores, devendo igualmente determinar ‘a priori a extensão (Umfang) da
diversidade, bem como o lugar das partes entre si’, de tal modo que não possa
ocorrer nem a retirada nem o acréscimo de membros, sem destruição da unidade
orgânica.
Como
dissemos acima, em outra oportunidade voltaremos ao O Caráter Rapsódico do Sistema de Kant - § 3º, do Capítulo II, de A reação neokantiana: As raízes imediatas de
um impasse - tema tratado pelo Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr.
REFERÊNCIA:
FERRAZ JÚNIOR, Tércio
Sampaio. Conceito de Sistema no Direito.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1976, p. 58-62.
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