– PEDRO LUSO DE CARVALHO
É possível que esta ou aquela
pessoa estranhe ao ler que estaremos falando um pouco da história do
Código Civil de 1916, por não mais viger desde 10.01.2002, quando a
Lei nº 10.406, que institui o novo Código Civil, entrou em vigor.
Por isso, não é demasia lembrar que o Código Civil de 2002 não
alterou na sua integridade do Código de 1916, ao contrário, muitos
de seus institutos permanecem inalterados na sua essência; os
institutos foram alterados para adequá-los aos tempos modernos, mas
o seu alicerce permanece aquele que foi construído por Teixeira de
Freitas, Nabuco de Araújo, Felício dos Santos Coelho Rodrigues, Rui
Barbosa, e Clóvis Bevilaqua. E, convenhamos, nunca é demais
escrever sobre Rui Barbosa e Clóvis Bevilaqua.
Abordaremos neste texto parte da
História do Código Civil Brasileiro, criado pela Lei nº 3.071, de
1 de janeiro de 1916, que tem a sua apresentação feita na
Disposição Preliminar, na forma do seu artigo 1: “Art.1. Este
Código regula os direitos e obrigações de ordem privada
concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações”. E, como
bem salienta Paulo de Lacerda, na sua apresentação para a 32ª
edição pela Editora Aurora – Coleção Lex - em maio de 1976,
todo o trabalho sobre o projeto desse Código Civil pode ser visto
sob dois aspectos: o literário e o jurídico.
No que diz respeito à formação
literária, esteve esta à altura da empresa. A esse respeito, diz
Paulo de Lacerda: “ A época mais brilhante foi quando da primeira
vez o projeto entrou no Senado. Rui Barbosa apresentou à comissão
especial, que presidia, o seu monumental parecer, datado de 2 de
abril de 1902, em que submetia a rigorosa crítica a linguagem do
projeto, oferecendo emendas à quase totalidade dos artigos”.
E, no tocante a crítica de
linguagem, “Levantou-se formidável polêmica, notadamente com
Ernesto Carneiro Ribeiro, que logo publicou as 'Ligeiras
Observações', às quais Rui Barbosa opôs a 'Réplica', que foi
respondida pela erudita 'A Redação do Código Civil'. A imensa
maioria das emendas tendo sido aceita e passada para o texto do
Código, pode-se afirmar, com verdade, que Rui Barbosa o remodelou na
forma gramatical, na exatidão da linguagem, e nas letras em geral. E
ficou obra de finíssimo labor, onde, no entanto, se encontram
falhas, como nos quatro artigos relativos ao 'homestead', cuja
inferioridade trai logo a interferência do buril rombudo de outro
artista muito menos hábil.”
Sobre a formação jurídica, o
segundo aspecto, acima referido, escreve Lacerda: “A formação
jurídica foi um grandioso certame, iniciado na comissão nomeada
pelo Governo, em 1899, para terminar somente agora, com a discussão
na Câmara, das 24 emendas mantidas pelo Senado. Inegável é,
contudo, que o período principal se encontra ao tempo da Comissão
dos 21, quando junto aos deputados, que a compunham, tomaram assento
vários juristas convidados a participar nos debates. Essa época
memorável exerceu influência capital no conteúdo do Código”.
A respeito dessa fase em que
juristas estiveram juntos para tentar aprimorar o Código, escreve
Lacerda: “Ali, naquele comício, foram as figuras proeminentes, de
um lado, Andrada Figueira, em relevo extraordinário chefiando a
corrente tradicionalista ou conservadora, cujas tendências eram
cercear os surtos liberais do projeto, circunscrevê-lo ao direito
existente, cingi-lo às máximas romanas e aos mandamentos das
Ordenações e Leis Extravagantes do Reino; e de outro lado, Clóvis
Bevilaqua, que, defendendo os arrancos progressistas do projeto,
chefiou a corrente liberal, que se esforçava por livrá-lo das
grilhetas de uma tradição demasiado pesada e agasalhar novas
idéias, aconselhadas pela ciência e pelos exemplos e dos povos que
marcham na vanguarda da civilização”.
Para redigir o projeto, que iria
servir de base aos trabalhos da codificação, o nome de Clóvis
Beviláqua se impôs pela saliente posição entre os juristas
brasileiros, autor que era de diversos livros, parte deles abordando
matérias de direito civil. Somando-se essa atividade de escritor,
outra atividade de destaque foi o exercício do magistério na
Faculdade de Direito do Recife, Tratava-se, pois, de um jurista de
prestígio, com toda justiça, só comparável a outros poucos
juristas pátrios, dentre eles Rui Barbosa, a Aguia de Haia.
Sobre as qualidades intelectuais e
morais de Bevilaqua, Lacerda diz ser ele dotado de “vasto cabedal
de estudos, cimentado pela argamassa preciosa do traquejo adquirido
em assíduo magistério, é de alma refratária às vanglórias, de
espírito ao mesmo tempo combativo e tolerante, sem arestas ferinas e
sem opiniões irredutíveis, e caráter que se não sente apoucado
reconhecendo o melhor. Era homem, pelos seus dotes de inteligência,
ânimo e coração, capaz de meter ombros a tão árduo e grandioso
empreendimento”. Tratava-se, tal empresa, da redação do projeto
do Código Civil de 1916.
* * *