10 de mar. de 2023

HISTÓRIA DO PROCESSO CIVIL – PARTE III



 PEDRO LUSO DE CARVALHO

Terminamos a segunda parte da História do Código de Processo Civil com a referência feita por Gabriel Rezende Filho sobre a obra de EDUARDO CUQ (Instituctions Juridiques das Romains, vol. 1º, pág. 141), que nela aborda as formas de execução:
A outra forma de execução – pignoris capio – surgiu mais tarde. Consistia na apreensão de bens bens do devedor. O credor, uma vez obtida sentença favorável, tinha o direito de apreender extra jus, isto é, sem ordem do juiz – diz Rezende -, os bens do devedor, a fim de se pagar. Cumpria o magistrado, porém, ordenar, em seguida, a venda deste bem em praça pública.
Em Roma apareceram as figuras dos cônsules e dos pretores, com a vitória dos plebeus e a conseqüente queda da realeza. Registra-se, nessa época, feitos importantes dos romanos: 1) a conquista de vastos territórios da Itália; 2) intercâmbio e aumento dos negócios. Em razão disso, ficou constatado que a proteção dos direito não era mais possível com as velhas fórmulas ou ações. A saída eram as fórmulas livres, com abrangência para todos os casos, que deveriam ser autorizadas pelo Magistrado.
Então foi editada a Lei Aebutia, que aboliu as primitivas Legis actiones, que seriam aplicadas apenas aos casos específicos que comportariam sua aplicação.
E no ano 126 A. C. A foram editadas as Leis Juliae judiciorum privatorum e judiciorum publicorum introduziram o sistema das fórmulas. Esse foi um período importante pelo conjunto das mudanças que se verificaram no direito dos romanos. A divisão do procedimento in jure in judicio foi mantida. Ao pretor cumpria examinar o que pedia o autor; o pretor então indicava no álbum pretoriano a ação que queria propor – edictio actiones.
Cabia ao pretor ouvir a defesa do réu e remeter a decisão do litígio ao árbitro, desde que a espécie comportasse ação. O autor então recebia a fórmula do pretor, na qual constava a indicação da ação, a lei a ser aplicada. A fórmula continha também a ordem do árbitro para, nos seus termos, condenar ou absolver o réu: si paret, condemna, si non paret, absolve.
Ensina Gabriel Rezende Filho (in Curso de Direito Processual Civil, Saraiva, São Paulo 1968, vol I), que a fórmula continha, geralmente, as seguintes partes: a) nominatio judicis, isto é, a nomeação do árbitro ou árbitros, seguindo-se as expressões... judex esto ou recuperatores sunto; b) demonstratio, uma espécie de introdução, onde vinha mencionado o nome da ação; c) intentio, a pretensão do autor, isto é, a relação de direito controvertida (conforme a ação, a intentio se dizia in rem ou in personam; d) condemnatio a ordem dada ao árbitro para condenar ou absolver o réu.
Nas ações divisórias – comnumi dividendo regundorum e familae – a fórmula continua uma parte especial, chamada adjudicatio, na qual o pretor autorizava o árbitro a adjudicar a um dos litigantes, sendo necessário, todo ou parte do imóvel dividendo, demarcando ou partilhando.
No começo da fórmula alguns casos de praecrisptiones eram previstas, com o fim de restringir ou ampliar os efeitos da litiscontestação, em benefício do réu ou do autor (pro reo ou pro actore).
E no que respeita às exceptiones, que antecedia a intentio, consistia em uma ordem do árbitro, com o fito de, depois de sopesar o fundamento da defesa, não condenar o réu, quais sejam: a) exceções dilatórias, que se dava pela alegação de um direito que contrariava o direito do autor, com o fito de, sob o aspecto forma, para lizar a ação; b) exceções peremptórias, que tinha o fim de anular ou perimir o direito do autor.
As fórmulas pretorianas dividiam-se em: a) in jus conceptae - referiam-se a questões que o direito civil expressamente as regulava; b) in factum conceptae - abrangiam os casos que eram admitidos apenas pela eqüidade do pretor, por não serem regidos pelo direito; c) vulgares e non vulgares – as fórmulas vulgares referiam-se a questões comuns, que anteriormente haviam sido debatidas, enquanto que as fórmulas non vulgares destinavam-se a casos novos.
Como já foi dito, o autor devia dirigir-se ao árbitro com a fórmula pretoriana. E para determinados casos funcionava um corpo de jurados, especialmente designados (recuperatores) ou um colégio de juízes permanentes (centumviri, decemviri).
Como ensina Gabriel Rezende Filho, instaurava-se, então, o procedimento in judicio, fazia-se a instrução da causa, produzindo as partes as suas provas, como testemunhas, documentos, confissão e juramento. Seguiam-se as altercationes, isto é, os debates orais pelos cognitores ou procuradores das partes. A sentença era proferida oralmente dentro dos limites da fórmula, e se o caso pertencia a um tribunal a decisão era dada por maioria de votos.
Quanto a recursos, ao tempo do processo formulário, havia: 1) a intercessio, na qual havia a intercessão de uma autoridade igual ou de mais alta categoria contra atos do magistrado – era concedida aos cônsules e, mais tarde, aos tribunos do povo contra atos dos pretores; 2) a revocatio in duplum, que era o recurso concedido ao réu, ao ser iniciada contra ele a execução de sentença por meio da actio judicati, visando atacar o julgado com fundamento de algum vício de forma ou de fundo; 3) a restitutio in integrum, que era medida de equidade concedida pelo pretor nos casos de plus petitio, de esquecimento de inclusão na fórmula de alguma exceção peremptória, que consistia em requerer o interessado a restituição contra qualquer ato processual.
Uma vez acolhido o recurso, a sentença impugnada era tida como inexistente; e, em decorrência disso, um novo processo era aberto, o judicium restitutorum. Mais tarde, ainda ao tempo do Império, apareceu a apelação. Quanto à execução das sentenças, estas não podiam ser ordenadas pelos seus protatores – árbitros ou colégios de juízes – porque não posuíam o imperium, poder reservado aos pretores.


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4 de nov. de 2022

HISTÓRIA DO PROCESSO CIVIL – PARTE II




PEDRO LUSO DE CARVALHO
Terminamos a última postagem de História do Código de Processo Civil alinhando as características do processo primitivo dos romanos. Agora faremos a abordagem da mais antiga de todas as legis actiones, qual seja, a actio sacramenti, que obrigava os litigantes a depositar certa importância em dinheiro em mão do pontífice. Esse depósito era denominado sacramentum. A importância depositada, no caso de ser improcedente a ação, era transferida para os sacrifícios públicos – sacra publica .
Nas ações imobiliárias, preleciona Gabriel Rezende Filho (in Curso de Direito Processual Civil, 9ª ed., vol. II, São Paulo: Saraiva, 1968), “nos primeiros tempos os litigantes deviam comparecer ao local do imóvel litigioso, acompanhados do magistrado, dos auxiliares do juízo e das testemunhas. Mais tarde, permitiu-se que a parte apresentasse ao magistrado um símbolo do objeto não transportável, por exemplo, um punhado de terra do imóvel, uma telha do edifício, uma ovelha do rebanho”. O magistrado ordenava que o vencido na demanda fosse expulso do imóvel.
Mais tarde susrgiu a actio per judicis postulationem, na qual o autor da ação pedia que o magistrado designasse um árbitro para decidir o litígio. Tinha por objeto o cumprimento das obrigações de fazer ou de prestar, bem como se destinava à demarcação, à partilha e de alguns casos de servidão. Diz Resende Filho: “Pouco se conhece, aliás, sobre o processo desta ação, uma vez que se perdeu grande parte do manuscrito de GAIO, que dela cuidava.”
Já a terceira ação, a actio per condictionem surgiu cerca de 200 anos depois das anteriores, com a Lei SILIA, destinada às demandas de quantia certa – pecunia certa, que mais tarde passou a regular as questões sobre coisa certa, res certa, com a vigência da Lei CALPURNIA.
G. Rezende Filho diz que "O seu nome - Lei CALPURNIA - deriva do fato do autor, na presença do magistrado, convidar o réu a voltar a juízo dentro de certo prazo – condictio – a fim de debaterem, então, a causa, escolhendo nesta ocasião o respectivo árbitro”. Acrescenta que “As duas últimas ações da lei eram verdadeiras execuções – a manus injectio e a pignoris capio”. A manus injectio apareceu primeiro. Era a execução sobre a pessoa do vencido.
A obra de EDUARDO CUQ ('Instituctions Juridiques das Romains, vol. 1º, pág. 141) é referida por G. Rezende Filho, que diz que esta constituía um ato de vingança privada, tolerada pela lei. Julgada a ação, o vencido era feito prisioneiro do vencedor, que levava o prisioneiro – addictus - “à presença do magistrado para tornar a captura pública e solene, proferindo, então, as palavras sacramentais: ego tibi manum injicio.
Diz mais Rezende Filho, com base em Eduardo Cuq: “Bastava esta solenidade para se considerar o vencido escravo do vencedor. Em seguida o magistrado ordenavaao credor levasse o devedor à praça no próximo dia de mercado – nundinae – a fim de ser o mesmo apregoado para um possível resgate.
Não havendo resgate do devedor, este poderia ficar com o credor definitivamente. Então o credor, já o tendo como seu escravo, que podia optar por vendê-lo, trans Tiberin, caso não lhe fosse conveniente ficar com ele.
A outra forma de execução – pignoris capio – surgiu mais tarde. Consistia na apreensão de bens bens do devedor. O credor, uma vez obtida sentença favorá, tinha o direito de apreender extra jus, isto é, sem ordem do juiz – diz Rezende -, os bens do devedor, a fim de se pagar. Cumpria o magistrado, porém, ordenar, em seguida, a venda deste bem em praça pública.
Na próxima postagem continuaremos com este trabalho. Para acessar a primeira parte deste trabalho, clicar em: HISTÓRIA DO PROCESSO CIVIL –PARTE I.





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22 de ago. de 2022

HISTÓRIA DO PROCESSO CIVIL – PARTE I




      – Pedro Luso de Carvalho

Para que se possa entender os principais institutos do Processo Civil, o ponto de partida é o processo romano, já que, não há dúvida, Roma foi o berço do direito. Estudando a obra de Gabriel Rezende Filho, que foi professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (in Curso de Direito Processual Civil, 9ª ed., vol. II, São Paulo: Saraiva, 1968), vemos que, na antiguidade, os egípcios, os judeus, o gregos tiveram suas experiências com os seus juízes e tribunais. Mas, não se pode negar, as experiências desses três povos antigos não tiveram nenhuma importância técnica e social para a formação das instituições jurídicas.
A evolução do direito romano foi rápida graças ao espírito guerreiro e prático dos romanos, e que se norteava pelo profundo respeito às leis. São três as fases que dividem a historia do processo civil: a) período da legis actiones, que vai da fundação de Roma até o ano de 149 A.C., aproximadamente: época em que o direito ficava restrito à cidade de Roma e suas adjacências; b) período formulário, do ano 149 A.C. ao ano 200 da era cristã, mais ou menos, com influência em toda a Itália; c) período da cognitio extraordinaria, do ano 200 ao ano 568, período em que se aplicava o direito a todo o Império.
Nos primeiros tempos denominaram os patrícios juntamente com o rei pontifex maximus – como preleciona Gabriel Rezende Filho. O conhecimento das leis a arte de sua interpretação, o calendário e as ações judiciárias eram privativas do colégio dos pontífices, o qual, todos os anos, designava um de seus membros para administrar a justiça da cidade de Roma.
O processo primitivo caracterizava-se por duas fases distintas: a) procedimento in jure, perante o magistrado, órgão do Estado; b) procedimento in judicio, perante os cidadãos escolhidos como árbitros ou jurados. Havia apenas cinco fórmulas para as ações, denominadas ações da lei – legis actiones, a saber: actio sacramentei, actio per judicis postulationem, actio per condictionem, manus infectio e pignoris capio. Em todas essas cinco ações, dizem os romanistas, havia rigoroso formalismo. Os litigantes deviam ater-se a extrita observância do cerimonial prescrito na lei. Um simples engono, ressalta Rezende Filho, a omissão de palavras sacramentais acarreta a nulidade do processo.
Refere-se GAIO, nas Institutas, ao caso de um litigante descuidado que teve a sua ação anulada, porque, ao invés de usar na petição da palavra genérica “arbor” exigida pela lei, usou da expressão “vites”- videira por se tratar exatamente de uma questão acerca de umas videiras...
Em traços gerais, diz o prof. Rezende Filho, o processo primitivo dos romanos apresentava as seguintes características: a) era oral, realizando-se perante o magistrado e as testemunhas, com as solenidades prescritas em lei; b) o juiz devia ser o mesmo, de princípio ao fim da causa; c) não havia advogados, comparecendo as partes pessoalmente a juízo; d) as ações ó podiam ser propostas em dias fastos; e) os atos processuais só se realizavam de dia: solis occasus suprema tempestas esto, dizia a Lei das 12 Tábuas; f) não era permitida a acumulação de ações; g) não se supriam as nulidades; h) a litiscontestatio era um ato solene e bilateral, significando o acordo das partes para ficarem em juízo até a sentença e respectiva execução.

   
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27 de jul. de 2022

A História do Código Civil de 1916





 – PEDRO LUSO DE CARVALHO


É possível que esta ou aquela pessoa estranhe ao ler que estaremos falando um pouco da história do Código Civil de 1916, por não mais viger desde 10.01.2002, quando a Lei nº 10.406, que institui o novo Código Civil, entrou em vigor. Por isso, não é demasia lembrar que o Código Civil de 2002 não alterou na sua integridade do Código de 1916, ao contrário, muitos de seus institutos permanecem inalterados na sua essência; os institutos foram alterados para adequá-los aos tempos modernos, mas o seu alicerce permanece aquele que foi construído por Teixeira de Freitas, Nabuco de Araújo, Felício dos Santos Coelho Rodrigues, Rui Barbosa, e Clóvis Bevilaqua. E, convenhamos, nunca é demais escrever sobre Rui Barbosa e Clóvis Bevilaqua.
Abordaremos neste texto parte da História do Código Civil Brasileiro, criado pela Lei nº 3.071, de 1 de janeiro de 1916, que tem a sua apresentação feita na Disposição Preliminar, na forma do seu artigo 1: “Art.1. Este Código regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações”. E, como bem salienta Paulo de Lacerda, na sua apresentação para a 32ª edição pela Editora Aurora – Coleção Lex - em maio de 1976, todo o trabalho sobre o projeto desse Código Civil pode ser visto sob dois aspectos: o literário e o jurídico.
No que diz respeito à formação literária, esteve esta à altura da empresa. A esse respeito, diz Paulo de Lacerda: “ A época mais brilhante foi quando da primeira vez o projeto entrou no Senado. Rui Barbosa apresentou à comissão especial, que presidia, o seu monumental parecer, datado de 2 de abril de 1902, em que submetia a rigorosa crítica a linguagem do projeto, oferecendo emendas à quase totalidade dos artigos”.
E, no tocante a crítica de linguagem, “Levantou-se formidável polêmica, notadamente com Ernesto Carneiro Ribeiro, que logo publicou as 'Ligeiras Observações', às quais Rui Barbosa opôs a 'Réplica', que foi respondida pela erudita 'A Redação do Código Civil'. A imensa maioria das emendas tendo sido aceita e passada para o texto do Código, pode-se afirmar, com verdade, que Rui Barbosa o remodelou na forma gramatical, na exatidão da linguagem, e nas letras em geral. E ficou obra de finíssimo labor, onde, no entanto, se encontram falhas, como nos quatro artigos relativos ao 'homestead', cuja inferioridade trai logo a interferência do buril rombudo de outro artista muito menos hábil.”
Sobre a formação jurídica, o segundo aspecto, acima referido, escreve Lacerda: “A formação jurídica foi um grandioso certame, iniciado na comissão nomeada pelo Governo, em 1899, para terminar somente agora, com a discussão na Câmara, das 24 emendas mantidas pelo Senado. Inegável é, contudo, que o período principal se encontra ao tempo da Comissão dos 21, quando junto aos deputados, que a compunham, tomaram assento vários juristas convidados a participar nos debates. Essa época memorável exerceu influência capital no conteúdo do Código”.
A respeito dessa fase em que juristas estiveram juntos para tentar aprimorar o Código, escreve Lacerda: “Ali, naquele comício, foram as figuras proeminentes, de um lado, Andrada Figueira, em relevo extraordinário chefiando a corrente tradicionalista ou conservadora, cujas tendências eram cercear os surtos liberais do projeto, circunscrevê-lo ao direito existente, cingi-lo às máximas romanas e aos mandamentos das Ordenações e Leis Extravagantes do Reino; e de outro lado, Clóvis Bevilaqua, que, defendendo os arrancos progressistas do projeto, chefiou a corrente liberal, que se esforçava por livrá-lo das grilhetas de uma tradição demasiado pesada e agasalhar novas idéias, aconselhadas pela ciência e pelos exemplos e dos povos que marcham na vanguarda da civilização”.
Para redigir o projeto, que iria servir de base aos trabalhos da codificação, o nome de Clóvis Beviláqua se impôs pela saliente posição entre os juristas brasileiros, autor que era de diversos livros, parte deles abordando matérias de direito civil. Somando-se essa atividade de escritor, outra atividade de destaque foi o exercício do magistério na Faculdade de Direito do Recife, Tratava-se, pois, de um jurista de prestígio, com toda justiça, só comparável a outros poucos juristas pátrios, dentre eles Rui Barbosa, a Aguia de Haia.
Sobre as qualidades intelectuais e morais de Bevilaqua, Lacerda diz ser ele dotado de “vasto cabedal de estudos, cimentado pela argamassa preciosa do traquejo adquirido em assíduo magistério, é de alma refratária às vanglórias, de espírito ao mesmo tempo combativo e tolerante, sem arestas ferinas e sem opiniões irredutíveis, e caráter que se não sente apoucado reconhecendo o melhor. Era homem, pelos seus dotes de inteligência, ânimo e coração, capaz de meter ombros a tão árduo e grandioso empreendimento”. Tratava-se, tal empresa, da redação do projeto do Código Civil de 1916.


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19 de abr. de 2022

EDUARDO COUTURE - 10º Mandamento - Ama A Tua Profissão

 




    - Pedro Luso de Carvalho



Nos dias atuais, o brasileiro surpreende-se com as notícias que recebe pelos meios de comunicação sobre desvio de conduta, na sociedade brasileira, de muitos de seus representantes, os políticos, a partir do Congresso Nacional, descendo para outras casas legislativas de muitos Estados-Membros do país, atingindo, por fim, tais atos contrários à lei e à ética, as câmaras de vereadores, em muitos de seus municípios.

A estupefação do povo, pelo que ocorre no Brasil, também no Poder Judiciário, o deixa desesperançado, já que este poder era o seu último alento; juízes de direito, de primeiro e segundo grau, também aparecem nesse cenário de degradação moral, sem falar no que se passa com o Poder Executivo, no qual não se tem parâmetro para ser medido o comprometimento com o crime de seus servidores, em todos os seus escalões.

E, para tristeza e decepção dos bons advogados, estes vêm colegas seus denunciados pela prática de crimes contra os quais deveriam estar denunciando, em defesa da sociedade; daí ter-me lembrado dos ensinamentos de um dos grandes processualistas sul-americano, o uruguaio Eduardo Juan Couture (1904-1956), nome conhecido em muitos países, professor de Processo Civil, Decano da Faculdade de Direito de Montevidéu, autor do projeto do Código de Processo Civil do Uruguai (1945), e autor, ainda, de Fundamentos do Direito Processual Civil e de Os Mandamentos do Advogado; deste, transcreveremos o seu 10º Mandamento (COUTURE, Eduardo. Os Mandamentos do Advogado. Tradução de Ovídio Baptista da Silva e Carlos Otávio Athayde. Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1979, p. 71-73) qual seja, "Ama a tua profissão", como segue:



[ESPAÇO DO 10º MANDAMENTO]

    "AMA A TUA PROFISSÃO"

    (Eduardo Couture)


Seja-nos permitido ilustrar o último mandamento com uma parábola. Conta Péguy que um dia ficou impressionado vendo sua mãe consertar uma cadeira. Era tal o esmero, o escrúpulo, a amorosa atenção, com que executava sua tarefa, que o filho manifestou-se admirado. A mãe, então, lhe disse: o amor pelas coisas bem-feitas deve acompanhar-nos por toda a vida; as partes invisíveis das coisas devem reparar-se com o mesmo escrúpulo com que se cuidam as partes visíveis; as catedrais de França são as catedrais de França porque o amor com que se fez o ornamento externo é o mesmo amor com que foram feitas as partes invisíveis.

Isso mesmo acontece em todos os atos da vida. O amor à profissão eleva-a a dignidade de uma arte. O amor por si só transforma o trabalho em criação; a tenacidade, em heroísmo; a fé, em martírio; a concupiscência, em nobre paixão, a luta, em holocausto; a cobiça, em prudência; o lazer, em êxtase; a ideia, em dogma; o amor-próprio, em sacrifício; a vida, em poesia.

Quando o advogado chega a ponto de aconselhar seu filho, no dia decisivo em que deve orientá-lo sobre seu futuro, que siga sua própria profissão, é porque encontrou nela algo mais que um simples ofício. Ofício, queremos para nós mesmos; mas para nosso filho almejamos, se possível, a glória.

A advocacia não é certamente um caminho glorioso. É feito, como todas as coisas humanas, de sacrifícios e de exaltações, de amarguras e esperanças, de desenganos e renovadas ilusões. Entretanto, é grande virtude entrever nela esse pequeno fio de ouro da glória que desejamos para nosso filho.

Coloquemos, nesse dia, a mão sobre seu ombro, e digamos-lhe: procura aqui, meu filho, o bem e a virtude que almejo para tua vida; e, sobretudo, faz pela defesa de teus semelhantes, na causa da justiça, tudo aquilo que eu quis fazer e a vida não me permitiu!

Terás com isso um pouco de glória e muita angústia. Mas está escrito na lei da vida que é este o preço que se paga pela própria vida. Já estava Expresso nos versos que o coro dirige a Wilhelm Meister, no poema imortal: Sê bem-vindo jovem noviço! Sê bem-vindo ao sacrifício!"




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26 de mar. de 2022

EDUARDO COUTURE - 9º Mandamento - Esquece





por Pedro Luso de Carvalho



O 9º Mandamento (“Esquece") do importante processualista uruguaio, Eduardo Couture, diz no seu intróito: “A advocacia é uma luta de paixões”. Esse é, sem dúvida, um fato que não é desconhecido dos advogados que passam boa parte de suas vidas debruçados sobre livros e processos na árdua luta visando a fundamentação adequada das teses que defendem, e, também, para fazer uma correta leitura dos autos na tentativa de encontrar algum indício neste ou naquele documento juntado pela parte contrária para, igualmente, valer-se dele para sustentar a tese de que o direito de seu cliente não foi respeitado pela parte contrária.

Eduardo Couture não se limita a fazer menção sobre essa luta de paixões; mostra nessa introdução ao seu penúltimo mandamento, o que pode ser feito pelo advogado para manter-se distante de aborrecimentos que tais embates podem proporcionar à sua saúde, dizendo: “Se a cada batalha fores carregando tua alma de rancor, chegará o dia em que a vida será impossível para ti. Terminado o combate, esquece logo tanto a vitória quanto a derrota”. Não se pode dizer que Couture esteja errado no que aconselha, visto que os problemas emocionais sempre deixam portas abertas para doenças oportunistas.

Passemos, pois, ao tema do 9º Mandamento de Eduardo Couture, intitulado “Esquece” (COUTURE, Eduardo. Os Mandamentos do Advogado. Tradução de Ovídio A. Baptista da Silva e Carlos Otávio Athyde. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1979), como segue, na íntegra:



[ESPAÇO DO 9º MANDAMENTO]

"E S Q U E C E"


(Eduardo Couture)



Para que o círculo do inferno irão um dia aqueles advogados que nos recitam, inclementes, às vezes agarrando-nos pelo casado, levantando-nos a voz como se fossemos o adversário, suas alegações, suas razões ou seus memoriais?

E que lugar do purgatório estará reservado àqueles que na velhice seguem contando ainda questões que sustentaram na juventude?

Em que lugar do paraíso espera os diretores das revistas de jurisprudência que se recusam a publicar as notas críticas daqueles que confundem as publicações jurídicas com uma terceira ou quarta instância?

A verdade é que existe uma insidiosa enfermidade que ataca aos advogados e os faz constantemente de suas causas, mormente daquelas que, por uma ou outra razão, nasceram para serem esquecidas.

Os pleitos, diz o provérbio, defendem-se como próprios e perdem-se como alheios.

Também a advocacia tem o seu fair play, que consiste não só no comportamento leal e correto durante a luta, mas também no acatamento respeitoso às decisões do juiz.

O advogado que segue discutindo depois da coisa julgada em nada difere do atleta que, terminado o prélio, pretende permanecer no campo de jogo tentando obter, contra um inimigo inexistente, uma vitória que lhe fugiu das mãos.






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17 de mar. de 2022

EDUARDO COUTURE / 8º Mandamento - Ter Fé



                           
                            EDUARDO COUTURE / 8º Mandamento - Ter Fé


                                                  - por  Pedro Luso de Carvalho



        A meu ver, a Ordem dos Advogados do Brasil é a instituição que mais tem se destacado, ao longo dos anos, na defesa das liberdades individuais e na defesa das demais instituições, sobre as quais estão sedimentadas as bases essenciais para que o nosso país possa figurar como Estado, e, como tal, defender a sua soberania e o direito de cada brasileiro.

        É sabido que o Brasil vive uma crise quase insuportável em razão da corrupção dos seus políticos e dos cidadãos comuns que com eles praticam atos contrários às leis vigentes, tanto civil como penal, visando tão-somente o enriquecimento fácil, nos seus negócios espúrios, que sempre acabam resultando em impunidade. Vemos não apenas o desrespeito às nossas leis, como também total indiferença à Ética e à Moral.

        Em razão de todo esse lamaçal, que é a política brasileira, dos políticos que são corrompidos e dos homens de 'negócios', que os corrompem às nossas vistas, que a eles entregam dinheiro, que logo são colocados por eles em suas meias, bolsos e cuecas. [Se tais crimes fossem cometido nos Estados Unidos (EUA), na Europa, no Japão, na China, os seus contribuintes saberiam que, uma vez julgados, prolatada a sentença condenatória, a pena seria cumprida na sua integralidade].


        Por todo o exposto, e por ainda acreditar que podemos contar com a Ordem dos Advogados, nessa luta quase inglória em razão do alto grau de corrupção em todas as esferas políticas do Brasil, é que escolhi para esta postagem o 8º Mandamento, de Eduardo Couture (Os Mandamentos do Advogado, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1979):


                                           

                                       [ESPAÇO DO 8º MANDAMENTO]

                                                                                    

                                                        "T E R    F É"

                                                                (Eduardo Couture)


     

             Cada advogado, em sua condição de homem, pode ter a fé que sua consciência lhe indique. Porém, em sua condição de advogado, deve ter fé no direito, porque até agora o homem não encontrou , em sua longa e comovente aventura sobre a terra, nenhum instrumento que melhor lhe assegure a convivência. A razão do mais forte não é somente a lei da brutalidade, mas também a lei da inconstante incerteza.

         Mas o direito, como vimos, não é um valor em si mesmo, nem a justiça é seu conteúdo necessário. O preceito não visa à justiça, mas à ordem; a transação não lhe assegura a justiça, mas a paz; a coisa julgada não é um instrumento de justiça, mas de autoridade; a pena nem sempre é medida de justiça, mas de segurança.

        Mesmo assim, apesar desses desvios temporais, a justiça é o conteúdo 'normal' do direito, e suas soluções, ainda que aparentemente injustas, são frequentemente mais justas que as soluções contrárias.

         A fé na paz provém da convicção de que também a paz é um valor na ordem humana. Substitutivo bondoso da justiça, convida a renunciar às vezes a uma parte dos bens, para assegurar aquilo que foi prometido na terra aos homens de boa vontade.

        Quanto à fé na liberdade, sem a qual não há direito, nem justiça, nem paz..., essa não necessita explicações, entre os mandamentos do advogado. Se este não tem fé na liberdade, melhor seria, como diz a Escritura, atar uma pedra ao pescoço e lançar-se ao mar.



                                                       

                                                      *  *  *  *  *  *





10 de mar. de 2022

EDUARDO COUTURE - 7º Mandamento - Ter Paciência

 





EDUARDO COUTURE - 7º Mandamento - Ter Paciência

por Pedro Luso de Carvalho



TER PACIÊNCIA, é o 7º Mandamento do Advogado, escrito por Eduardo Couture (“O tempo vinga-se das coisas que se fazem sem a sua colaboração” - diz Couture). Sabem todos os advogados experientes, presumo, que a paciência é, como diz o mestre processualista uruguaio, indispensável para que a advocacia possa ser exercida com dignidade e eficiência.

Sem paciência o advogado poderá deixar de ouvir de seu constituinte fatos importantes para a elaboração da ação a ser ajuizada. Elementos probantes essenciais não podem escapar da argúcia do advogado, pois, sabemos, a petição inicial não pode ser emendada depois da citação do réu.

Esse zelo, por parte do advogado, que é indispensável para o êxito do pedido, como também o é quando se tratar da resposta do réu, que, como ocorre com a peça inicial, não prescinde de estudo profundo dos fatos e de acurada análise dos documentos, que são oferecidos pelo constituinte. E, tanto para a elaboração da peça inicial como da resposta do réu, a paciência também ajudará nas respectivas fundamentações de Direito, com base na lei, na jurisprudência e na doutrina.

Passemos, pois, À transcrição na íntegra de mais um Mandamento do Advogado, de autoria do jurista uruguaio, EDUARDO COUTURE:



[ESPAÇO DO 7º MANDAMENTO]

"TER PACIÊNCIA"

(Eduardo Couture)

O tempo vinga-se das coisas que se fazem sem a sua colaboração”.

Existe um pequeno demônio – diz Couture – que ronda e persegue os advogados e a cada dia põe em perigo sua missão: a impaciência.

A advocacia requer muitas virtudes; mas, além disso, como as fadas que cercavam o berço do Príncipe de França, tais virtudes devem ser assistidas por outra que as faça habitualmente atenuantes.

Paciência, para escutar. Cada cliente considera seu caso o mais importante do mundo.

Paciência para encontrar a solução. Esta nem sempre aparece à primeira vista e é mister procurá-la durante muito tempo.

Paciência para suportar o adversário. Já vimos que lhe devemos lealdade e tolerância, ainda quando ele seja importuno e néscio.

Paciência para aguardar a sentença. Esta demora e, enquanto o cliente desanima e desespera, cabe ao advogado manter-lhe a esperança. Nessa missão, deve ter presente que o litígio, como a guerra, é ganho em certos casos por aquele que consegue aguentar tão-só um minuto a mais que seu adversário.

E, sobretudo, paciência para suportar a sentença adversa.

A coisa julgada, como disse Chiovenda, é a máxima conclusão. Acrescentemos nós que, por tal motivo, exige a máxima paciência.






REFERÊNCIA:

COUTURE, Eduardo. Os Mandamentos do Advogado. Trad. de Ovídio A. Baptista da Silva e Carlos Otávio Athyde. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1979, p. 59-60





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27 de jan. de 2022

EDUARDO COUTURE / 6º Pensamento - Tolera

 




EDUARDO COUTURE / 6º Pensamento - Tolera

                                                                          


                             - por Pedro Luso de Carvalho

Dentre as muitas preocupações do advogado, quando se propõe a defender os interesses de seu constituinte, uma delas é aparentemente de pouca importância, qual seja, a de deixar transparecer que é e será fiel a quem o contratou. Particularmente, acredito que essa lealdade ao cliente é a conduta que acaba prevalecendo. Mas, não escondo que nem sempre a conduta de alguns advogados é a de lealdade a quem, mediante pagamento, espera que a lei seja aplicada em seu benefício.

Também sempre senti que o cliente nunca acredita totalmente no seu advogado. Sempre haverá de perguntar a um amigo a um juiz ou a outro advogado se a medida tomada por quem a defende está correta. E mais: se é dele a culpa de o processo levar muito tempo para ser julgado de forma definitiva. Não raras vezes ouvi pessoas perguntarem se o seu adversário na lide tem algum conhecido no fórum e está intercedendo em seu favor, de forma a prejudicar o andamento do processo.

Já tive a oportunidade de presenciar, em audiência de instrução e julgamento, o modo de agir do advogado que possivelmente está recebendo essa carga negativa de seu cliente, por desconfiar não apenas de sua competência mas também de sua lealdade. E é justamente por isso que, nessas audiências, o advogado fica exposto à critica ao opor-se ao seu colega que aí representa a outra parte, com risos sarcásticos ou interferências verbais desajustadas e contrárias às normas vigentes quanto a atuação desse profissional. Acredito que por esse motivo o jurista Eduardo Couture tenha escrito o 6º Mandamento do Advogado: "TOLERA- Tolera a verdade alheia, como gostarias que a tua fosse tolerada".

Passemos, pois, à transcrição na integra desse 6º Mandamento do Advogado, escrito por Eduardo Couture (in COUTURE, Eduardo. Os Mandamentos do Advogado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor), como segue:



[ESPAÇO DO 6º MANDAMENTO]





T O L E R A"

                  (Eduardo Couture)" 


6º – TOLERA – Tolera a verdade alheia, como gostarias que a tua fosse tolerada.

Esta questão é grave e delicada. Ser ao mesmo tempo enérgico, como o requer a defesa, e cortês, como exige a educação; prático, como impõe o litígio, e sutil, como o reclama a inteligência; eficaz e respeitoso; combativo e digno. Ser, ao mesmo tempo, tão diferente e, às vezes, tão contraditório, em todos os dias do ano e em todos os momentos, na adversidade e na bonança, constitui realmente um prodígio.

E, não obstante – prossegue Couture -, a advocacia assim o impõe. Ai daquele que a exerce com energia e sem educação, ou com cortesia, mas sem eficiência!

Para conciliar o contraste só há um meio: a tolerância. Esta é educação e inteligência, arma de ataque e escudo de defesa, lei de combate e regra de equidade.

Ainda que apareça inacreditável – diz Couture -, o certo é que no litígio ninguém tem razão antes da coisa julgada. Não há litígios ganhos de antemão. Basta, para tanto, lembrar a história de luta de Golias e David. Não há litígio ganho de antemão, devido à singela razão pela qual Golias incidiu em arrogância ao considerar-se antecipadamente vencedor na histórica luta.

O litígio é feito de verdades contingentes e não de verdades absolutas. Os fatos mais claros se deformam, se não se logra produzir uma prova plenamente eficaz; o direito mais incontroverso abala-se no decurso da demanda, ante uma inesperada e imprevisível mudança de jurisprudência.

Daí porque a melhor regra profissional não é aquela que promete a vitória, mas a que informa ao cliente que provavelmente se poderá contar com ela. Nem mais nem menos do que isso era o que estabelecia o Fuego Juzgo, ao cominar a pena de morte ao advogado que se comprometia a triunfar na causa; ou a Terceira Partida que impunha perdas e danos ao advogado que assegurasse a vitória a seu cliente.

As verdades jurídicas, como se fossem de areia, dificilmente se podem conter todas na mão; sempre existirão alguns grãos que, queiramo-lo ou não, nos escaparão por entre os dedos e irão parar nas mãos de nosso adversário. A tolerância nos obriga, por respeito ao próximo e a nossa própria fraqueza, a proceder com fé na vitória, porém sem arrogância no combate.

E se o cliente nos exige garantia de vitória?

Nesse caso – conclui Couture -, apelemos para nossa biblioteca e retiremos dela um escrito singelo, denominado Decálogo do cliente, muito comum nos escritórios de advogados brasileiros e mostremos a esse cliente: “Não peças a teu advogado que faça profecia da sentença; não esqueças de que, se fora profeta, ele não abriria escritório de advocacia.”



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REFERÊNCIA

COUTURE, Eduardo. Os Mandamentos do Advogado. Tradução de Ovídio Baptista da Silva e Carlos Otávio Athayde. Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1979, p. 53-55.






22 de dez. de 2021

EDUARDO COUTURE / 5º Mandamento - Sê Leal

 




                 - por Pedro Luso de Carvalho


     Neste 5º Mandamento do Advogado, intitulado Sê Leal, Eduardo Couture, professor e jurista uruguaio internacionalmente conhecido, que lecionou em vários países, no Brasil, inclusive, autor do Código de Processo Civil do Uruguai, em 1945, e também autor de livros jurídicos, justifica plenamente o seu imenso prestígio, embora tenha falecido há algumas décadas. Aqui, Couture sintetiza qual deve ser o comportamento do advogado, no plano da lei e da ética, em relação ao seu cliente, ao seu adversário e ao juiz.

      Escreve sobre a lealdade que deve nortear o comportamento do advogado em relação a ambos. Depois da síntese sobre o dever do advogado em ser leal, Couture trata com profundidade cada um dos tópicos do 5º Mandamento. E mais: diz quando o advogado atua como tal, e quando deixa de ser advogado para tornar-se defensor.

      Passemos, pois, ao 5º Mandamento (Sê Leal), que é, entre os outros nove, um dos mais importantes, no meu entender. Após, segue a transcrição do desdobramento que Couture faz sobre esse Mandamento, uma importante lição, sem dúvida, para advogados, juízes (In Couture, Eduardo. Os Mandamentos do Advogado. Tradução de Ovídio Baptista da Silva e Carlos Otávio Athayde. Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1979, págs. 45-50):

[ESPAÇO DO 5º MANDAMENTO]

"SÊ LEAL"

(Couture)


     5º Mandamento - Leal para com teu cliente, a quem não deves abandonar a não ser que percebas que é indigno de teu patrocínio. Leal para com o adversário, ainda quando ele seja desleal contigo. Leal para com o juiz, que ignora os fatos e deve confiar no que tu lhe dizes.; e que, mesmo quanto ao direito, às vezes tem de confiar que, no que tu lhe invocas.

     No que se refere à lealdade do advogado, impõe-se retificar um erro grave e difundido. Há séculos, se vêm confundido, como se fossem a mesma função, a advocacia e a defesa.

    Unamuno, no El sentimiento trágico de la vida, escrevia estas palavras: “O peculiar e característico da advocacia é pôr a lógica a serviço de uma tese a ser defendida, enquanto o método rigorosamente científico parte dos fatos, dos dados que a realidade nos oferece, para chegar ou não a uma conclusão. A advocacia supõe sempre uma petição de princípios, e seus argumentos são todos ad probandum. O espírito advocatício é, em princípio, dogmático, enquanto o espírito estritamente científico é puramente racional e cético, isto é, investigador”.

    Dessa proposição, à de Vaz Ferreira – quando afirma, em Moral para intelectuales, que a profissão do advogado é intrinsecamente imoral, porquanto impõe a defesa de teses não totalmente corretas, ou de fatos não totalmente conhecidos – não há mais que um passo.

   O erro é grave, porque a advocacia não é dogmática. A advocacia é arte, e a arte não tem dogmas.

    A advocacia é cética e investigadora. O advogado ao aconselhar, ao orientar a conduta alheia, ao assumir a defesa, começa por investigar os fatos e decidir livremente sobre a própria conduta. A advocacia moderna como a Medicina, faz-se cada dia mais preventiva que curativa. Nessa atividade, o advogado não procede dogmaticamente, mas, ao contrário, criticamente. O advogado, como conselheiro, não dá argumentos ad probandum, mas ad necessitatem. Estes não são sistemáticos nem corroborantes, mas se apoiam sobre dados que, necessariamente, a realidade lhe fornece.

    O que acontece é que o advogado, uma vez examinado os fatos e estudado o direito, aceita a causa e então se transforma de advogado em defensor.

   Aí, sim, a sua posição é definitiva, transformando-se em enérgico e intransigente defensor de suas atitudes. Mas isso não ocorre por imoralidade, senão por uma contingência da própria defesa. Antes de aceitar a causa, o advogado tem liberdade para decidir. Aceitando-a, porém, sua lei não é mais da liberdade, e sim da lealdade.

     Se o defensor permanecesse cético e vacilante depois de haver aceito a defesa, deixaria de ser um defensor. A luta judiciária é uma luta de afirmações e não de vacilações. As dúvidas devem ocorrer antes, não depois de haver aceito a causa.

    A lealdade do defensor para com seu cliente deve ser constante e não deve faltar senão quando ele se convença de haver-se enganado ao aceitar a causa. Nesse caso, deve renunciar à defesa, com a máxima discrição possível, para não criar embaraço ao advogado que deve substituí-lo.

    O instante mais decisivo para essa lealdade ocorre no momento de receber os honorários. O grave nas relações entre advogado e cliente é que, instantaneamente, de um dia para outro, a natureza das coisas transforma o defensor em credor. Nesse dia, não se deve lançar o escudo ao solo, para que o cliente o empunhe em defesa contra seu novo inimigo. A esse respeito, os Mandamentos silenciam. Trata-se de um problema de consciência. Já dizia Montaigne: a amizade perfeita é indivisível.

    Quanto à lealdade para com o adversário, pode ser traduzida nesta simples reflexão: se às astúcias da outra parte e às suas deslealdades, respondêssemos com outras deslealdades e astúcias, a demanda já não seria uma luta de um homem honrado contra outro manhoso, mas a luta de dois desonestos.

    E quanto à lealdade para com o juiz? Também aqui se impõe uma retificação.

    Ossorio, em seu livro famoso, faz uma distinção com referência aos deveres do advogado para com o juiz. Quanto aos fatos, considera ele que o juiz está indefeso ante o advogado. Como os ignora, forçosamente há de crer de boa-fé no que o advogado lhe diz. Porém, quanto ao direito, isso não ocorre. Aqui, eles atuam em pé de igualdade, porque o juiz sabe o direito e, senão o sabe, que o estude.

   Será assim? É muito provável que não. O advogado dispõe de todo o tempo que deseja para estudar o direito aplicável ao caso. Mas o juiz, vítima de uma tela de Penélope, que ele tece à noite e o escrivão desmancha de dia, apresentando-lhe, sem cessar, processos e mais processos, não dispõe desse tempo. E o mesmo acontece com o juiz honradamente pobre, que não pode comprar todos os livros que se publicam; ou com o que exerce seu mister longe dos grandes centros, onde se encontram as boas bibliotecas; ou com o que não pode manter contato com professores e mestres para expor-lhes suas dúvidas; ou com o que, carente de saúde não pode dedicar-se à leitura com a intensidade desejada. Nestes casos, uma citação deliberadamente mutilada, uma opinião desvirtuada, uma tradução maliciosamente feita, ou um precedente jurisprudencial difícil de conferir, constituem grave deslealdade.

  Uma feliz filiação etimológica - conclui Couture - liga lei a lealdade. Aquilo que Quevedo dizia do espanhol, que, sem lealdade, mais valerá não sê-lo, é aplicável ao advogado. Advogado que trai a lealdade, trai a si mesmo e à lei.




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